Se a visão futurista de Fred van Eenennaam, chairman do Value-Based Health Care Center Europe, se concretizar, o sistema de saúde sob o modelo VBHC será ainda mais digital nos próximos anos, com foco em um cuidado mais eficaz e personalizado, além de um novo perfil do profissional de saúde: guiado pelos dados, mas com compaixão.
“Todo paciente precisa de alguém que olhe para as suas necessidades e o guie no processo de autocuidado. Inevitavelmente, o papel dos profissionais de saúde vai mudar e o médico guiado por dados será o novo normal”, detalha o presidente da plataforma europeia de ensino e conexão da comunidade internacional do Value-Based Healthcare – ou VBHC, como é mais conhecido.
Em tradução livre, a sigla se refere à saúde baseada em valor ou em resultado; na prática, significa favorecer a remuneração dos serviços de saúde de acordo com a sua qualidade, e não com a quantidade, como é feito atualmente via modelo Fee For Service (FFS).
Segundo van Eenennaam, nos sistemas de pagamento tradicionais, os profissionais acabam impedidos de fazer o que é certo para os pacientes – o que não acontece no modelo VBHC, cujo foco é o melhor desfecho. “No passado, medir os desfechos era algo assustador, mas os times de saúde do futuro usarão os padrões de qualidade de vida com confiança e não apenas para adicionar anos à vida do paciente, mas vida aos anos”, explica.
Como chegar a esse futuro? O chairman traz algumas sugestões. “Nós devemos acelerar o trem da implementação de VBHC, especialmente nas áreas de cuidados com idosos, saúde mental e atenção primária, nas quais vimos pouco progresso até agora.”
Em entrevista exclusiva ao portal Time de Saúde, van Eenennaam elenca as principais dificuldades que o VBHC ainda precisa resolver, os impactos do modelo para cada ator social, as respostas sobre as dificuldades na medição do custo-efetividade e arrisca os próximos passos do modelo no mundo.
Desde a criação do conceito de VBHC, parece ter surgido um consenso a respeito do termo, dos problemas no sistema de saúde e da importância em se reduzir o desperdício e maximizar o valor no sistema. No entanto, desde então, os prêmios de seguros nos EUA continuam crescendo a 2x a inflação pelos últimos 15 anos e cerca de 60% dos pagamentos nos Estados Unidos ainda são no modelo tradicional FFS (excluindo Medicare e Medicaid). Na América Latina, e em outros lugares do mundo, a situação é ainda pior. Na sua opinião, qual é o motivo dessa lentidão na implementação dos conceitos de VBHC e na evolução dos modelos alternativos de pagamento?
Essa é uma excelente pergunta. Eu vejo três razões para isso. Primeiro, gasta-se muito tempo para tirar a ambiguidade do termo “baseado em valor”. Se não estiver claro aos líderes de saúde o que o VBHC implica e como funciona, eles terão muita dificuldade em explicar aos seus funcionários e stakeholders por que o modelo deve ser implementado. Então, foram necessários muitos anos para provar os benefícios dos melhores desfechos para o paciente, dos custos mais baixos por ciclo de paciente e para melhorar o trabalho em equipe, especialmente na estratificação de pacientes e condições médicas. Em segundo lugar, os pagadores (operadoras de saúde) têm dificuldade em adotar o compartilhamento de risco nos contratos, ao invés de um rateio simples da economia de custos, o que já prejudicou os pacientes em vários momentos. Por fim, leva tempo para construir relações de confiança e acordos justos entre os provedores (profissionais de saúde), pagadores, indústria e os atores responsáveis pelas políticas públicas. Devido a legados institucionais e interesses divergentes entre os stakeholders governamentais, instalar os sistemas de VBHC pode se tornar um processo complexo muito rapidamente.
“Restaurar a conexão entre o modelo econômico e a motivação dos profissionais de saúde em favorecer um cuidado centrado no paciente cria um impulsionador muito poderoso e fortalece as relações entre as partes.”
No Brasil, a saúde privada não tem muita experiência com o modelo, embora exista uma cobertura universal via SUS, o Sistema Único de Saúde. Na saúde privada, a Alice é a primeira empresa a implementar o modelo no país. De que forma a cultura de saúde ou a experiência em saúde de um país e região pode impactar na implementação e na aceitação do VBHC, na sua visão? E quais são os principais atores sociais que devem ser esclarecidos quanto ao modelo alternativo?
De fato, a situação local e as circunstâncias demandam ajustes em como o VBHC será implementado. O envolvimento governamental, especificamente, pode decidir entre o sucesso e o fracasso na implementação sustentável do modelo, e isso varia muito de acordo com o país ou a região. Quando os provedores mais prospectivos recebem o apoio dos responsáveis pelas políticas públicas, pode haver mais financiamento e maior facilidade nas regulamentações.
No entanto, é importante ressaltar que a saúde em geral, e especificamente o modelo VBHC, é um negócio de pessoas. O ganhador brasileiro do Prêmio VBHC, JoinVasc (programa da Secretaria Municipal de Saúde de Joinville, em Santa Catarina), mostrou que quando você combina, de forma inteligente, trabalho duro, boa prática médica e o envolvimento dos stakeholders certos, o modelo pode ser aplicado em escala, mesmo em países com recursos escassos. É por isso que passamos tanto tempo tentando ajudar a construir modelos locais de VBHC, dentro do VBHC Center Europe. Nossos programas educacionais são ajustados às circunstâncias locais de nossos participantes, mas se mantêm próximos dos princípios e dos conceitos centrais de VBHC. E tudo isso só começa quando adotamos a mesma linguagem e abandonamos a atitude de sentar e esperar.
Os benefícios dos modelos alternativos de pagamento, que visam a maximizar o valor por meio do alinhamento de incentivos e redução de desperdícios, são claros e, em grande parte, bem compreendidos. No entanto, no modelo tradicional de FFS, os profissionais de saúde parecem ter pouca responsabilidade sobre a eficiência e a capacidade de repassar os custos às operadoras. Na sua visão, quais são os principais benefícios dos modelos alternativos a partir da ótica dos profissionais de saúde?
O modelo FFS garante que os profissionais de saúde façam muitos procedimentos – mesmo que isso não leve aos melhores desfechos para os pacientes e suas famílias. Se os profissionais fazem menos procedimentos, eles recebem menos. Esse sistema de ganhar e perder leva as operadoras a criarem regras administrativas pesadas, que basicamente servem para duvidar dos médicos. Embora o objetivo seja conter os gastos, isso resulta em uma carga administrativa alta, com desconfiança e aumento da pressão sobre os profissionais a fazerem cada vez mais.
O professor Michael Porter [criador do modelo VBHC] avalia que, se nós não pagarmos por “sucesso” ou para melhorar os desfechos, nós nunca vamos atingir o melhor valor para o paciente. E, depois de 1.235 implementações de VBHC feitas pelo VBHC Center Europe, nós podemos mostrar com confiança que isso é verdade todas as vezes.
Os modelos alternativos de pagamento (APM, na sigla em inglês) formam uma ponte entre o FFS e os pagamentos baseados em valor. Isso, além de acelerar a transição contínua entre os modelos, favorece o alinhamento dos incentivos de volume para valor. Essa transição é altamente relevante para os profissionais de saúde porque eles, em última análise, se importam com os desfechos positivos dos pacientes. Restaurar a conexão entre o modelo econômico e a motivação dos profissionais de saúde em favorecer um cuidado centrado no paciente cria um impulsionador muito poderoso e fortalece as relações entre as partes.
“A revolução digital também pode facilitar o desenvolvimento de ambientes digitais aos pacientes, que ofereçam caminhos e protocolos personalizados para melhorar o fluxo dentro do sistema e criar uma experiência melhor.”
Como você descreveria os benefícios dos modelos de pagamento alternativos para cada um dos principais stakeholders do sistema: pacientes, pagadores/operadoras e os profissionais de saúde?
Para os pacientes, os benefícios dos APMs são melhores desfechos médicos e [impacto] na qualidade de vida, além de uma melhor experiência. Alcançar uma saúde melhor é muito mais barato do que os principais problemas de saúde que não são resolvidos.
Para os pagadores, os benefícios são encontrar e ajudar os times de saúde certos a serem fortes em criar valor aos pacientes. Transferir os riscos operacionais aos times e melhorar a estimativa desses riscos são medidas principais para se tornar uma seguradora/pagadora melhor. É difícil estimar o risco comportamental, mas quando se continua investindo em soluções inovadoras para educar, engajar e empoderar os pacientes, os pagadores criam um retorno sustentável desse investimento por meio de melhorias significativas e clinicamente mensuráveis.
E isso me leva à indústria. Claro que não podemos nos esquecer que ela pode se beneficiar muito por meio do desenvolvimento de soluções digitais e de software personalizados para os pacientes. Os bons serviços fornecidos pela indústria serão usados pelos times VBHC para melhorar o valor ao paciente.
Já os profissionais de saúde não serão mais impedidos pelos sistemas de pagamento de fazerem o que é certo para os pacientes. Com os APMs, eles podem inovar, melhorar e aprender a ser médicos guiados por dados do sistema de saúde moderno, ao invés de trabalhar o máximo possível e gastar 40% do tempo em questões administrativas.
Em 2004, em uma entrevista ao NYT, Michael Porter mencionou a importância de se medir e entender o custo-efetividade no sistema com um exemplo: ele gostaria de saber se os médicos que solicitam mais exames recebem diagnósticos mais precisos do que os médicos que solicitam menos exames. Na Alice, vemos como um grande desafio a medição de desfechos. Como você enxerga esse desafio, e como superar a dificuldade de medir em escala o custo-efetividade?
Devemos focar em fornecer o tratamento certo para o diagnóstico certo, ao invés de sub ou sobrediagnosticar. Todo mundo que já passou pela experiência de ter um diagnóstico tardio ou incorreto sabe que é possível atingir um valor real e uma economia de custos nessa área.
Nós já deixamos para trás a ideia de que devemos checar todo e qualquer exame para tentar encontrar os custos e os valores. Ajudamos mais os times multidisciplinares se focarmos em como a informação do exame diagnóstico influencia na tomada de decisão do time, e em como um bom diagnóstico cria um fluxo melhor para o paciente dentro do sistema de saúde.
Os exames diagnósticos devem ser incluídos nos pacotes de pagamentos, de forma que não precisemos nos preocupar com o custo unitário por exame. Se nós formos pagar por cada exame, então optamos pelo incentivo errado. O objetivo final é ajudar e desafiar os profissionais de saúde a atingirem os melhores resultados a partir dos diagnósticos corretos.
Como você enxerga o papel da prevenção na transformação do sistema e como as operadoras de saúde podem fazer isso de uma maneira que seja sustentável do ponto de vista financeiro?
Políticas públicas de saúde são a melhor forma, e a mais barata, de manter a população saudável. Isso inclui alimentação saudável, água potável, ar limpo, renda, educação, segurança, emprego e, claro, hábitos saudáveis, como não fumar. Esses são os determinantes mais poderosos da qualidade de vida e prevenção de problemas médicos.
Em anos recentes, nós vimos times de VBHC na liderança que incorporaram mais desses programas orientados para a qualidade de vida. Mas nós ainda temos modelos diferentes de pagamentos e diferentes medidas de prevenção, então é difícil medir o custo-efetividade das medidas preventivas. Não há dúvidas, porém, que nós temos que elevar os níveis da prevenção primária, secundária e terciária e eu espero que os futuros ganhadores do Prêmio VBHC (iniciativa anual do VBHC Center Europe para o reconhecimento de iniciativas reconhecidas no modelo de saúde) nos inspirem em como isso pode ser feito.
Quais são os próximos passos para o modelo VBHC? Quais tendências podemos esperar nos próximos anos?
Nós estamos em uma encruzilhada em muitos países. Continuaremos temendo o aumento dos custos e o acesso limitado à saúde e reagindo a isso mudando orçamentos e recursos? Ou devemos adotar uma postura proativa na qual cada paciente está, realmente, no centro do cuidado?
Para mim, a resposta é clara. Nós devemos acelerar o trem da implementação de VBHC, especialmente nas áreas de cuidados com idosos, saúde mental e atenção primária, nas quais vimos pouco progresso até agora. Na atenção primária, por exemplo, podemos significativamente melhorar o cuidado baseado em valor ao segmentar a população e desenvolver diferentes planos de cuidado para os adultos jovens saudáveis, para os indivíduos com doenças agudas e para a população idosa mais frágil, que precisa manejar múltiplas condições crônicas.
A Oak Street Health (serviço de saúde nos Estados Unidos com foco em atenção primária voltada à pessoa idosa) é um exemplo emocionante de como sair da ideia tradicional de que a atenção primária acontece principalmente no consultório médico ao adotar uma abordagem baseada na comunidade. Todo paciente precisa de alguém que olhe para as suas necessidades e o guie no processo de autocuidado.
Além disso, as abordagens holísticas e personalizadas da saúde se tornarão parte integral da próxima geração do modelo VBHC. Nosso ecossistema de saúde deve abraçar totalmente a transformação digital, porque o uso dos softwares certos, em combinação com os conceitos de VBHC, cria oportunidades de alcançar um cuidado mais eficaz em larga escala. A revolução digital também pode facilitar o desenvolvimento de ambientes digitais aos pacientes, que ofereçam caminhos e protocolos personalizados para melhorar o fluxo dentro do sistema e criar uma experiência melhor.
Ainda, eHealth (eletronic health) e mHealth (mobile health) vão permitir aos pacientes estarem conectados aos profissionais de saúde 24 horas por dia, sete dias na semana, além de coletarem dados em todo o ciclo de cuidado, para melhorar a tomada de decisão compartilhada.
Inevitavelmente, o papel dos profissionais de saúde vai mudar e o médico guiado por dados será o novo normal. O cuidado guiado por dados exige uma comunicação em tempo real e uma coordenação entre os times. Por fim, tornar os desfechos obrigatórios é um próximo passo importante para o futuro da implementação do VBHC. No passado, medir os desfechos era algo assustador, mas os times de saúde do futuro usarão os padrões de qualidade de vida com confiança e não apenas para adicionar anos à vida do paciente, mas vida aos anos.
Estou confiante de que a próxima geração da implementação de VBHC vai gerar soluções para nos ajudar a lidar com questões sociais de inclusão e equidade na saúde, além de construir comunidades mais fortemente conectadas.