A rotina do cantor e compositor britânico Elton John passa longe dos centros cirúrgicos e consultórios médicos, mas um trecho do clássico Rocket Man é capaz de acolher os sentimentos de, senão todos, boa parte dos profissionais de saúde. 

“And all this science, I don’t understand… It’s just my job, five days a week.” Elton queria um pouco a mais do que a Ciência estava lhe fornecendo para a viagem espacial da música; ele queria entender os porquês. Cássia Regina Suzuki também.

A médica oftalmologista e líder da especialidade na Alice sempre gostou das questões filosóficas que circundam a existência humana e, quando passou no curso de medicina pela USP, não teve dúvidas: precisava estudar filosofia também. 

“A medicina pretende ser uma Ciência exata, porque é baseada em estatística, mas é humana também. Em um dado momento, os profissionais sentem muita falta dessa humanidade, principalmente depois da faculdade, na prática do dia a dia. Isso porque a gente cuida de gente e, quando paramos para pensar nisso, percebemos a importância do caráter humano da medicina, sem nunca perder de vista a Ciência”, explica a médica, que faz parte do board médico da Alice e é doutora em retina e vítreo pela Unifesp. 

E, quando o mundo se viu às voltas de uma das maiores pandemias do século, coube à filosofia, aliada aos estudos da ética na saúde, direcionar os caminhos – nem sempre fáceis de seguir. 

“Tivemos que discernir e não deixar a nossa conduta ser influenciada pelos nossos preconceitos e opiniões. Se fizermos uma retrospectiva do que a OMS (Organização Mundial da Saúde) ditou durante a pandemia, tudo foi feito de acordo. O problema estava naqueles que não tinham esse preceito na cabeça e mantiveram o descrédito na Ciência”, detalha Suzuki, que é professora visitante da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, onde ministra aulas no curso de Humanidades. 

Leia abaixo a entrevista completa:

O que fez você se interessar pelos estudos da ética e da bioética? Alguma história ou experiência profissional lhe marcou eticamente?

Bom, eu tive uma influência muito grande do meu pai [Hisashi Suzuki], que é professor de oftalmologia associado da Faculdade de Medicina da USP e que sempre teve uma conduta muito ética e investiu na nossa essência ética. E, quando a gente começa a prática da medicina, acabamos vendo e acompanhando muitas atitudes duvidosas. De início, eu tinha muita raiva, porque havia a sensação de que estava tudo errado, mas eu não conseguia ter um fundamento teórico para analisar e entender. Foi com a minha segunda faculdade, de filosofia, que eu consegui analisar, fundamentar todos os meus pensamentos e ver do avesso. Como diz o Edmund Pellegrino, que é um superestudioso em ética médica, “a Ciência pode prover os meios, mas apenas a filosofia pode definir os fins”. Temos que sempre parar e pensar, fundamentar e manter essa prática. A medicina é o exercício constante do pensar. 

 

“Nossas atitudes devem ser exatamente as mesmas, seja no visível ou invisível. Não fazemos algo para sermos reconhecidos, mas, sim, porque é o que deve ser feito.”

 

Foi seu pai que a incentivou a estudar filosofia como segunda graduação?

Não, ele quase perdeu todos os cabelos nessa fase, mas eu sempre gostei da filosofia. De dia, eu fazia medicina na USP e, à noite, eu ia para a PUC-SP para a filosofia. Isso foi no primeiro ano da faculdade, quando eu quase larguei a medicina. Foi aí que meus pais me sugeriram viajar, parar e pensar. E eu fui, com 18 anos, para a Europa, bem mochileira. Na viagem, percebi que a medicina era o meu caminho, mas a vontade de continuar os estudos filosóficos nunca saiu da minha cabeça. Depois do doutorado em medicina, voltei para a filosofia, mas faltou pouco para me formar nessa segunda graduação.

O que te instigou a voltar para a filosofia?

Eu acho que as questões ficam na cabeça de qualquer médico porque a medicina, e essa é uma frase do Pellegrino também, pretende ser uma Ciência exata, porque é baseada em estatística, mas é uma exata que também é humana. E, em um dado momento, a gente sente muita falta disso, do humano, principalmente depois, quando já estamos trabalhando. Porque a gente cuida de gente.

Na sua opinião, por que um profissional de saúde deve se dedicar ao estudo da ética/bioética? 

A ética fundamenta a prática médica, e isso vale para qualquer profissão, na verdade. Não existe prática alguma sem o fundamento ético. É intrínseco da nossa atitude, que deve ser ética. O mito do anel de Giges fala muito sobre isso, que é citado na obra “A República”, de Platão. O anel concede o poder de tornar invisível quem o usar. E isso é justamente o que acontece na nossa prática, nas nossas atitudes. Temos que agir como se o anel de Giges não fosse nada importante, porque nossas atitudes devem ser exatamente as mesmas, seja no visível ou no invisível. Não fazemos algo para sermos reconhecidos como tendo feito o certo, mas, sim, porque é o que deve ser feito. 

 

“O propósito de deixar o mundo mais saudável não é uma casca ou uma maquiagem, mas algo que está na essência da Alice e dos profissionais que atuam nela.”

 

Quais são os principais desafios, atualmente, nas discussões da ética entre os profissionais de saúde?

Gasta-se muito, hoje, em compliance e auditoria, justamente porque a essência está corrompida. Eu falo para as minhas filhas que, quanto mais eu invisto na essência ética delas, menos rédea eu tenho que manter. Como fazer para melhorar essa essência no âmbito profissional? Eu não tenho essa resposta, mas acho que a Alice tem essa essência. Porque a Alice está sendo formada com todo o propósito de acordo com a ética. O propósito é deixar o mundo mais saudável, e isso não é uma casca ou uma maquiagem, mas algo que está na essência da gestora de saúde, e dos profissionais que atuam nela. 

Sobre ética e desenvolvimento científico, o desenvolvimento da tecnologia da informação, em particular dos sistemas de aprendizado autônomo, junto aos avanços na capacidade de analisar e manipular a genômica, apontam para um cenário onde a humanidade terá o superpoder de predizer e tratar doenças antes mesmo que elas existam. É possível que os algoritmos e o entendimento da genética criem um viés determinístico à “normalidade”? Qual o papel da ética nesse cenário?

Eu acho que nós, seres humanos, adoramos confabular e especular sobre o futuro, mas tem tanta coisa no meio do caminho, tanto ruído, que é impossível firmar uma ética para o infinito. Cada momento é um momento diferente, então não é possível prevermos uma situação em que a ética possa dizer x ou y, precisamos ver quando o momento chegar. É o que a Marilena Chauí [filósofa e escritora] diz: o homem não consegue lidar com o espaço vazio, tem que sempre preencher. Então, vamos com calma.

Em uma entrevista divulgada no site da Harvard Medical School, a fundadora do Centro de Bioética da HMS, Christine Mitchell, relata a história de um paciente adolescente, diagnosticado com leucemia, cuja família não queria que ele soubesse da doença. Um dia, ele a questionou sobre a condição, e ela não soube o que responder. É mais fácil imaginar os dilemas éticos em cenários como esse, mas e na oftalmologia? Quais são as principais discussões éticas desta área?

Talvez não seja uma questão ética, mas uma discussão atual é o uso da terapia gênica, que ainda é tremendamente cara. Um exemplo é o voretigene neparvovec (vendido sob nome comercial Luxturna), que é um medicamento muito caro e usado para tratar uma doença extremamente rara. Sabemos pela OMS que a principal causa de cegueira no mundo é a falta de óculos, porque os pacientes não têm acesso aos médicos oftalmologistas e não conseguem comprar os óculos, que são itens também caros. O mesmo montante que custa o medicamento para uma única pessoa poderia beneficiar, só com exame oftalmológico e óculos, um número maior de pessoas. Não sei se é uma questão ética, mas essa é a discussão que mais me perturba. 

Com relação a outros dilemas, há entre os preceitos da medicina o respeito pelo outro. Todo paciente tem o direito de saber o que o aflige, o que ele tem. É uma questão de respeitar a integridade do outro, pois a vontade do paciente é legítima. Não vejo isso como um dilema ético. Se for um paciente menor de idade ou incapaz, respeita-se a vontade dos responsáveis. Agora, se for uma pessoa idosa e cuja família não quer que ela saiba, mas ela quer saber, por respeito a ela e à vontade dela, eu enquanto médico devo falar. Nosso trato ou acordo, cuidado e respeito é com o nosso paciente. 

Um artigo publicado recentemente no periódico científico New England Journal of Medicine (NEJM) elencou alguns dos ensinamentos éticos na saúde deixados pela pandemia de covid-19. Na sua opinião, a pandemia da covid-19 pode ser considerada um marco ético na saúde? Por quê?

Eu não acho que seja um marco ético, mas acho que foi uma experiência do quão ético nós podemos ser. Porque a ética já existe desde sempre, e você pratica ou não. Mas foi na pandemia que vimos quem tem esses fundamentos intrínsecos na essência, e quem precisa rever. Um exemplo foram os profissionais que fincaram o pé no direito à autonomia ou no uso do tratamento profilático. A princípio, quando ainda não sabíamos de muita coisa, tínhamos uma autonomia, dada à gravidade, e na ética temos essa ressalva: frente a uma emergência, estamos autorizados a fazer o melhor pelo paciente. Mas, a partir do momento que a Ciência avançou, e ela sempre se atualiza, as verdades antigas deixaram de ser as mesmas. E, se não as acompanharmos, não conseguimos manter o nosso preceito ético inerente de fazer o melhor para o paciente, e de ter a Ciência em primeiro lugar.

Ainda sobre o artigo, os autores destacam que outros desafios na saúde global contribuíram para as sociedades examinarem criticamente as práticas de saúde da época, como o uso da penicilina durante a Segunda Guerra Mundial e as terapias antirretrovirais contra o HIV/aids. Você acredita que, em uma próxima emergência global de saúde, as decisões poderiam ser tomadas com base em uma visão ética diferente?

Não, acho que tudo foi feito como deveria ter sido. Precisamos ter alguns preceitos éticos na cabeça sempre, como o primeiro mandamento de, primeiramente, não lesar. Outro preceito é que a Ciência tem que estar em primeiro lugar, e não podemos escapar disso. E um terceiro é não influenciar a nossa conduta com os nossos preconceitos e nossas opiniões. A conduta da prática deve estar separada das opiniões e dos nossos preconceitos. Se fizermos uma retrospectiva do que a OMS ditou na pandemia, tudo foi feito certinho. O problema está naqueles que não tinham esses preceitos em mente, principalmente com o descrédito na Ciência.

Como não se deixar influenciar pelos próprios preconceitos e opiniões? Não é uma tarefa difícil? 

Existe um conceito do Michael Foucault [filósofo] sobre biopolítica que destaca como o nosso poder da sabedoria, principalmente em saúde, pode ditar alguns preceitos, mas não podemos deixar que isso interfira nas nossas decisões. Não podemos nos valer de nenhum dado científico para referendar uma opinião nossa; pelo contrário. Temos que verificar o dado, interrogar o que ele quer dizer e como pode influenciar a nossa conduta para que seja o melhor para o paciente. A pessoa que coloca a opinião acima de tudo vai pincelar vários dados para fundamentar a própria opinião, e isso é enviesado e atrapalhado. Essa é a biopolítica pura. 

Tensionar as realidades para que se encaixem nas próprias opiniões é parte do comportamento dos movimentos antivacinas, não é? 

Exato. Uma antropóloga da USP, Marcia Couto, fez uma pesquisa enorme sobre os movimentos antivax e destaca que eles têm essa mania de pegar um estudo pincelado e se basear em cima disso. Como a Ciência muda sempre, e precisamos acompanhá-la, é muito fácil pegar um dado anterior, que diz exatamente o que você pensa.  

Ainda sobre as vacinas, houve uma redução na cobertura vacinal no Brasil nos últimos anos, com a ameaça do retorno de doenças que estavam praticamente inexistentes, como a poliomielite. Qual é o papel ético dos profissionais de saúde na retomada do ritmo da imunização? E qual é o papel ético dos profissionais que vão, a partir de janeiro, assumir as secretarias estaduais e Ministério da Saúde para reverter esse cenário?

O papel é a informação. O que podemos fazer é levar o conhecimento às pessoas. Estamos hoje em uma era em que o conhecimento é muito diferente da informação e dos dados. Há um salto enorme entre dados e informação, e entre informação e conhecimento. E é nosso papel levar o conhecimento de fato, sempre. 

Qual seria o conhecimento, e como ele se diferencia dos dados e da informação?

O conhecimento vem quando conseguimos filtrar, interpretar e fundamentar os dados e as informações corretas. Dados precisam ser interpretados e fundamentados. Já diria o poeta norte-americano T.S. Eliot: “onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”.

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